segunda-feira, 28 de maio de 2012

O INIMIGO SEM ROSTO


A partir de meados do séc. XIX, o recurso a “campos minados” constituiu um meio de combate em quase todos os conflitos entre os povos.

Mais de 400 milhões de minas foram implantadas desde o início da II Guerra Mundial, afectando várias regiões. 



A cada 20 minutos, em algum lugar do mundo, explode uma mina terrestre e fere pelo menos uma pessoa. As minas têm um efeito devastador no moral dos combatentes, caracterizam-se por serem o “inimigo invisível ou o inimigo sem rosto”, não distinguem entre opositores armados e civis inocentes. Quando não matam provocam a agonia dos atingidos... são concebidas essencialmente para limitar a acção e o avanço do inimigo.

Foram as minas que fizeram abortar a “missão” de que trata o presente texto.
Segundo alguns estudiosos, em Maio de 1973, em Guidaje (Guiné), as forças armadas portuguesas foram submetidas à prova mais dura dos três teatros de operações da guerra colonial.

Guidaje chegou a estar isolada durante alguns dias devido ao uso intenso, prolongado e sem restrições, por parte do PAIGC, de armamento pesado de longo alcance e elevado poder de fogo, designadamente foguetões de 122mm e morteiros. Esta actividade do PAIGC alcançou valores que são considerados os mais altos de sempre desde o início da guerra – 220 acções durante o mês, o mesmo sucedendo em relação a baixas causadas às tropas portuguesas – 63 mortos e 269 feridos.

O Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 4 (DFE 4), que tive a honra de comandar, em missão de serviço na Guiné (1973/74) foi protagonista conjuntamente com elementos do DFE 1, em Maio de 1973, de uma acção (sem apoio aéreo e sem possibilidade de evacuação) de proteção próxima a uma coluna de reabastecimento do Exército a Guidaje e cujo desfecho pretendo partilhar convosco.

Para o efeito, passo a transcrever o texto, em tempos, solicitado por um nosso camarada, que também viveu a guerra naquele teatro de operações, destinado a divulgação num “blog”:

Caro amigo
Respondendo ao teu e-mail…

A minha passagem pela Guiné (1973/74) comandando o DFE 4 foi uma etapa da minha carreira militar bastante marcante e indelével. As diversas situações de perigo por que passámos jamais serão esquecidas, muito embora compreenda que quem as protagonizou, as tenha vivido de modos muito diferentes, uma vez que são emoções que variam conforme a sensibilidade de cada um.

Segundo a opinião de conceituados especialistas militares, a guerra levada a cabo na Guiné, pelas suas características, foi a mais difícil e perigosa que Portugal enfrentou em África.

Nós, os que escolhemos, por vocação, a carreira das armas, não nos podemos queixar face aos milhares de cidadãos que partiram compulsivamente para combater nas ex-colónias.

Reflectindo sobre a minha vida militar e pelos diversos cargos que ao longo da mesma fui chamado a desempenhar, confesso que o Comando do DFE 4 foi, de longe, o que mais me marcou.

Senti, de modo inequívoco, o peso da responsabilidade nas decisões a tomar e a noção das consequências que estas poderiam ter sobre a vida dos comandados.

Senti a aproximação, que presumo única, entre comandante e subordinado, alicerçada na camaradagem e na solidariedade; todos sofrem as mesmas carências e estão sujeitos a idêntico esforço físico perante o perigo comum.
Ao chefe acresce a decisão.
A acção responsável de comando, neste contexto, resulta naturalmente mais eficaz, melhor compreendida e respeitada pelos subordinados.

Sobre o que me solicitas, vou limitar-me a transcrever a parte do livro “Guiné 1968 e 1973” (pág. 82/84) do Cor. Nuno Mira Vaz com a qual me identifico, já que tive intervenção directa na tentativa do rompimento do cerco a Guidaje:

“ … Na manhã de 22 de Maio partiu de Binta para Guidaje nova coluna logística, com a missão de, na volta, evacuar os militares e os civis feridos que ali tinham vindo a acumular-se por impossibilidade de evacuação. O deslocamento dos feridos parecia finalmente possível, face aos resultados alcançados no decurso da operação Ametista Real, a qual, de acordo com prognósticos generalizados, teria provocado uma grande desorientação nas fileiras do inimigo. Conforme planeado, a CCP 121 encarregava-se da proteção próxima, a oeste da estrada Binta – Guidaje, cabendo a um Destacamento Misto de Fuzileiros (quarenta e dois elementos dos DFE´s nº 1 e nº 4), sob o comando do 1º tenente AN/FZE Albano Alves de Jesus, a protecção imediata, a leste. A responsabilidade pela picagem do troço de itinerário entre Binta e Genicó foi atribuída a um grupo de combate da Companhia de Caçadores nº 14, da guarnição de Farim; daí para a frente, a missão ficaria a cargo de um pelotão reduzido (treze elementos) da Companhia de Caçadores nº 3.

O deslocamento iniciou-se pelas sete horas e trinta minutos, tendo-se desenrolado sem incidentes até Genicó, embora em marcha lenta, justificada pela necessidade de se proceder a uma picagem cuidadosa do itinerário. Além disso, foi também necessário utilizar um desvio com cerca de mil metros de extensão, para contornar o local onde se encontravam completamente destruídas e calcinadas várias viaturas, testemunhas silenciosas da violência registada em anteriores tentativas de reabastecimento a Guidaje.

Transposto o desvio e percorridos menos de cem metros sobre o itinerário normal, um elemento da Companhia de Caçadores nº 3 accionou uma mina anti-pessoal, reforçada com uma mina anti-carro, que lhe causou morte imediata. A relutância com que os picadores vinham procedendo à picagem do itinerário, e que tem de se compreender face à sucessão de acontecimentos dramáticos ocorridos nas últimas semanas, tornou-se mais viva, forçando o 1º tenente Alves de Jesus e o Alferes Gomes Rebelo, da Companhia nº 3, a deslocarem-se para a testa da coluna, onde podiam acompanhar de perto a picagem – um dos trabalhos mais perigosos e desgastantes em qualquer acção terrestre.

Dez metros adiante, foi accionada outra mina. A explosão provocou a morte do picador, tendo além disso ferido com gravidade dois elementos e projectado pelo ar, embora sem consequências pessoais, ambos os oficiais e o radiotelegrafista da coluna.

Informado, em Guidaje, da ocorrência, o Tenente-coronel Correia de Campos deu instruções para que se retomasse a progressão logo que estivesse concluída a assistência aos feridos, se possível com maior celeridade e de preferência utilizando um desvio, uma vez que o itinerário normal aparentava estar abundantemente minado. Porém, no decurso do tratamento dos feridos, deflagrou nova mina, desta feita colocada fora do itinerário, que provocou mais um ferido muito grave. Durante o atendimento a este ferido, foi detectada mais uma mina na orla do itinerário, a qual não foi levantada por não existir na coluna pessoal habilitado para o efeito.
Atendendo ao desgaste sofrido pela coluna, foi decidido reforçá-la com um grupo de combate que saiu de Genicó e se lhe juntou cerca das 12H00. A disposição geral era de grande desalento, sendo especialmente preocupante a situação de um dos feridos, o qual perdia muito sangue por ter a perna esquerda decepada um pouco abaixo do joelho, além de ferimentos nos braços e no olho direito. Tendo reavaliado a situação, o comandante do COP 3 deu ordem para abortar o reabastecimento, pelo que a coluna regressou ao ponto de partida, que atingiu cerca das 17H45…”

O ferido muito grave atrás referido, com a perna decepada, após ter sido assistido em Bissau, foi evacuado para Lisboa para tratamento especializado e colocação de prótese. Voltei a encontrá-lo alguns anos mais tarde no Rossio (Lisboa). Já ia na 3ª prótese de adaptação e desempenhava actividade profissional num armazém.

Há situações na nossa vida que jamais se esquecem. Escrevo este texto como testemunho de uma época, ou melhor de um dia-a-dia sem espaço para a felicidade, que passei - que passámos - nessa comissão na Guiné. Ingrato seria não recordar quem me ajudou em momentos difíceis, nomeadamente os camaradas de curso Martins Soares (infelizmente já falecido), Vasco Lupi e Cortes Simões (Comandantes de LFG’s), os quais, excedendo o âmbito de missões que lhes estavam atribuídas, me prestaram um apoio sempre solidário e amigo. A eles presto sentida homenagem e manifesto agradecimentos sinceros.
Albano Alves de Jesus

1 comentário:

Albano Jesus disse...

O ferido grave referido neste texto é o Óscar Lourenço dos Santos com quem tivemos a satisfação de conviver no passado dia 21 de Abril nas comemorações do 39º Aniversário do DFE 4.