segunda-feira, 22 de setembro de 2008

EPISÓDIO...


Transcrição do conteúdo do email enviado pelo Joaquim Caneira àcerca dos WC's em uso no Chugué

"Caro comandante, envio-lhe algumas fotos, relacionadas com a visita do Chefe do Estado Maior da Armada, creio eu.
A propósito desta visita, recordo este episódio: a determinado momento o Almirante pergunta-lhe onde ficam as casas de banho e o senhor, expontaneamente, diz-lhe, apontando para o interior da mata que nos rodeia; do lado direito oficiais e, do lado esquerdo, sargentos e praças!...

Cumprimentos
Caneira "

domingo, 21 de setembro de 2008

PERSONAGEM


Recebido, por correio electrónico, do Sarg. H FZE Joaquim Pereira Caneira, que esteve em GUIDAJE (Guiné Bissau) com o DFE 4, quando do isolamento daquela guarnição militar por parte das Forças do PAIGC e cujo relato aqui divulgado, através de uma entrevista que concedeu à revista "Desembarque", em muito contribui para o esclarecimento e clarificação das inúmeras incorrecções e omissões, que vêm circulando na imprensa escrita nas últimas décadas.


Devemos, antes de mais, confessar que, quando decidimos avançar 
para este iniciativa, desconhecíamos, quase por completo, a pessoa que iríamos abordar, apenas algumas vagas referências sobre a relevância dos serviços que havia prestado na Guiné, bem como a sua grande coragem e competência. Combinámos o encontro, para as proximidades da vila de Ansião, onde, debaixo da sombra de uma nogueira que existe junto à casa de campo do signatário, decorreu a nossa conversa. Após as apresentações, sentámo-nos à mesa de cimento para um improvisado mas bem apaladado almoço, na companhia de mais alguns Fuzileiros e, no decurso do mesmo, falou-se, obviamente, da guerra e dos diversos episódios relacionados com os Fuzos.
O nosso imaginário estatelou-se, de imediato, no aquartelamento de Guidaje e nas matas e bolanhas circundantes, tendo como pano de fundo o tenebroso cenário dos ataques sanguinários, dos mortos e feridos, da dor e do sofrimento.
Ficámos absolutamente horrorizados e fascinados com as descrições feitas pelo nosso “personagem”, que com a sua destreza, sangue frio e extraordinários conhecimentos na área da saúde, constituía a única réstia de esperança e força anímica, para quantos por ali lutavam desesperadamente pela sobrevivência e por um pouco de dignidade, quer fossem Fuzileiros, militares de outros ramos ou população indígena.

Este ilustre Enfermeiro, JOAQUIM PEREIRA CANEIRA, nasceu em 1945, em Glória do Ribatejo – Salvaterra de Magos.
Alistou-se na Armada, como 2º Grumete voluntário, em 01 de Abril de 1963. Dois anos depois, foi promovido a Marinheiro, na classe de Manobra. No período de 1968 a 1971 frequentou e concluiu o curso de Enfermagem Geral, obtendo a promoção a 2º Sargento, desta especialidade, em Junho de 1971.
De Abril a Setembro, do ano de 1972, frequentou o 28º curso de Fuzileiros Especiais, que concluiu com aproveitamento e louvor, tendo sido agraciado, no final, com o prémio “Manuel Correia Gomes”, que se destinava a premiar o sargento ou praça que obtivesse a melhor classificação.
Em Novembro de 1972, é nomeado para uma comissão de serviço na Guiné, integrando o Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 4, onde chega em Abril de 1973. Regressou à Metrópole em Outubro de 1974, a bordo do NRP S. Gabriel.

Em Julho de 1976, é-lhe concedida baixa do serviço da Marinha, passando à situação de reserva Ab.
A partir desta altura, começou a desenvolver a sua actividade profissional de Enfermeiro, nos Hospitais da Universidade de Coimbra. Foi professor de enfermagem durante 14 anos, na Escola Superior de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca, em Coimbra e, em 2001, passou à situação de aposentado da função pública. Actualmente, exerce ainda actividade, como professor de enfermagem, na Escola Superior de Saúde Jean Piaget, em Viseu.

Para “O Desembarque” constitui uma honra e um privilégio, levar ao conhecimento dos leitores as acções altamente meritórias, que nos enchem de prestígio e de orgulho, de um virtuoso camarada de armas que, não obstante os sucessos alcançados ao longo da vida, se sente muito honrado e orgulhoso por pertencer à grande família dos Fuzileiros, que considera homens extraordinários, corajosos e destemidos, para os quais o país tem grande dívida de gratidão.

DESEMBARQUE: Caro “Filho da Escola”, depois desse brilhante e excitante percurso de vida, ainda te recordas daquelas estranhas sensações que de ti se apoderaram quando chegastes à Guiné?

J. P. CANEIRA: Claro que recordo! … Ao chegar à Guiné, fui invadido por um turbilhão de sentimentos de angústia, insegurança e até mesmo medo, face aos relatos que ouvia relativamente ao que se passava nos teatros de guerra daquela Província. Contudo, a realidade do que vi e vivi foi muito mais dramática que aquela que a minha imaginação concebeu. Na verdade, por mais que nos esforcemos por relatar objectivamente o que sofremos, ao longo dos inesgotáveis meses de guerra, será difícil, para quem nos ouve, avaliar em absoluto o quanto padecemos. O sofrimento físico foi muito intenso, mas o psicológico foi atroz. Assistir ao desaparecimento de vidas humanas a todo o momento, lutar para salvar a vida dos que ficavam gravemente feridos, tendo consciência de que todo o esforço desenvolvido resultava, em muitas circunstâncias, apenas no adiamento da sua morte por algumas horas, destrói qualquer ser humano.

DESEMBARQUE: Já nos apercebemos da tua visão profundamente humana, tranquilizadora e encorajadora, sendo que a tua acção empenhada e corajosa era, para muitos, a única e ultima esperança que lhes restava. Tinhas bem a consciência desse teu papel e agias sempre em função desses valores, desses elevados princípios éticos e morais?

J. P. CANEIRA: Hoje, passados 35 anos, quando reflicto sobre a minha missão como enfermeiro, invade-me um sentimento de grande tristeza e, simultaneamente, de grande alívio, porque tenho a consciência de que fiz tudo o que me era possível fazer, sendo certo que nunca, em momento algum, deixei de socorrer alguém por medo ou com receio de perder a minha vida. Na verdade, era eu que prestava assistência a todos os elementos das Forças Armadas, em Guidaje e Chugé. Fazia de médico, de enfermeiro e até de assistente social, porque tinha a noção, bem patente, de que, acima de tudo, era a minha pessoa a grande esperança de sobrevivência para toda aquela gente, incluindo os próprios nativos.

DESEMBARQUE: Consta até que foi o “Fuza” Caneira que, com refinada subtileza, conseguiu impor a regra sublime de que, fosse em que circunstância fosse, o corpo de um camarada, ferido ou morto, mesmo que se encontrasse desfeito, nunca era deixado ou abandonado no terreno, mas sim transportado para lugar onde a sua dignidade humana fosse minimamente preservada. É tudo isto verdade e confirmas esta situação?

J. P. CANEIRA: Sim, essa era a máxima de que os Fuzileiros não abdicavam! E, em grande parte, isso tem algum fundamento. Esforcei-me muito e inventei algumas estratégias para que assim acontecesse. Com efeito, passei por uma situação trágica que me chocou e comoveu profundamente. No dia 12 de Maio de 1973, em consequência de um cerco, feito pelo inimigo, ao aquartelamento de Guidaje, recebemos ordens para enquadrar uma coluna militar de reabastecimento que partiria de Binta para Guidaje, porquanto havia a informação de que um grupo operacional do PAIGC, bastante numeroso e bem armado, actuava naquela zona e já teria impedido a passagem de uma primeira coluna, resultando do confronto uma apreciável quantidade de mortos e feridos entre a tropa portuguesa. Tive então oportunidade de verificar, ao longo do itinerário, sinais evidentes e arrepiantes dos confrontos bélicos com as colunas anteriores, nomeadamente viaturas destruídas e corpos de soldados mortos, em combate, espalhados pelo chão. Estes corpos não foram resgatados por nós, como eu e todos os camaradas gostaríamos, porque havia a forte probabilidade de estarem armadilhados e da existência de minas nas proximidades dos cadáveres.
Na verdade, tive oportunidade de constatar, com tristeza, o sentimento generalizado dos militares, com o pavor estampado nos rostos mirrados, ao preferirem uma morte imediata em vez de ficarem gravemente feridos ou incapacitados. Era a preocupação mórbida de evitar o sofrimento, nem que fosse através da morte. Tudo isto eu tentava ultrapassar, dando alento e aconselhando força anímica, através de uma argumentação consoladora, mas muitas vezes com a consciência do vazio e da desesperança, procurando tão-somente um frágil conforto e um “animus” especial, que os levasse a encarar o sofrimento com mais leveza e suavidade.

DESEMBARQUE: Mas consta que chegastes mesmo a tomar medidas concretas para tornar possível um encaminhamento minimamente digno aos desgraçados que perdiam a vida?

J. P. CANEIRA: Sim, isso também é verdade. Recorri, muitas vezes à cera derretida, que obtinha das velas das Igrejas, para tapar todos os orifícios dos cadáveres, não só os do próprio corpo, como a boca, as narinas, ouvidos e ânus, como os provocados por balas ou estilhaços, na tentativa de retardar os maus cheiros e a putrefacção, prolongando a conservação dos corpos o mais tempo possível, tendo em vista um enterro mais digno e o eventual aparecimento de umas espécies de caixão ou simplesmente um lençol para os embrulhar debaixo da terra. Também fui eu que introduzi o método de lançar a cal em pó em redor dos cadáveres, com o mesmo propósito antes referido. Isto é, uma forma de preservação, com o sentido de, em algum momento, serem recuperados e não ficassem para sempre abandonados ou servissem de alimento aos abutres e outros animais carnívoros.
A propósito disto, fiquei recentemente comovido com a admiração dos familiares dos pára-quedistas mortos, que foram trasladados para Portugal, cujos corpos foram desenterrados na Guiné e se verificou a existência de cal a envolvê-los. Pois fui eu mesmo, com a intenção atrás referida, que procedi a tais operações. Ainda a propósito das medidas tomadas, passou-se um caso curioso e, não fora o bom senso do meu comandante, acabaria por me acarretar alguns dissabores. É que o Director dos Serviços de Saúde da Guiné chegou a questioná-lo sobre a utilização e destino dos medicamentos, suspeitando que o enfermeiro andasse a lucrar ou fazer contrabando dos mesmos, tal eram as quantidades extras requisitadas, quando, na verdade, eu apenas procurava, com eficiência comprovada, fazer face às enormes necessidades com que diariamente me deparava. De resto, nunca o meu Destacamento, em tempo algum, teve qualquer elemento de baixa, por doença, em Bissau. Disto tomou conhecimento o Director de Saúde, que ficou deveras surpreendido e bastante satisfeito, ao verificar as estatísticas em relação às demais Unidades.

DESEMBARQUE: Chegou ainda ao nosso conhecimento que também impusestes regras, suficientemente rigorosas, para a prevenção do paludismo?

J. P. CANEIRA: Sim, é verdade. Inventei e impus regras de procedimento, que todos deveriam observar, quanto à forma de tomar os comprimidos. Não só impunha regras como exercia permanente vigilância sobre esses comportamentos. O único indivíduo que não controlava, por razões de confiança, era o meu ajudante, o “Boticas” Andrade, e que, por isso, se desleixava e não os tomava. Como consequência, apanhou uma carga de tal ordem, que por pouco o não matou.

DESEMBARQUE: As circunstâncias em que exercestes a tua nobre e importante missão eram, como se constata, altamente difíceis, mas mesmo assim, o teu desempenho foi absolutamente extraordinário e determinante, sendo muitos os êxitos alcançados e uma reputação inigualável, reconhecida por todos quantos viviam ou sobreviviam naquela região. Achas que te eram garantidas as mínimas condições para trabalhar e que te era proporcionada alguma réstia de segurança?

J. P. CANEIRA: Ao chegarmos a Guidaje, deparamo-nos com um cenário tétrico. As instalações militares apresentavam-se todas esburacadas, algumas partes destruídas ou semi-arruinadas, revelando uma sensação de abandono, pois que, de início, não se vislumbrava vivalma. Os militares encontravam-se posicionados nos seus postos de vigia, próximos dos abrigos de protecção. Encontramo-los moralmente destroçados, fisicamente exaustos, desnutridos e com o sentimento de abandono pelas chefias militares. Os ataques eram constantes e de uma violência extrema, ouviam-se gritos de socorro por todos os lados e os mortos e feridos eram abundantes. Era uma desorientação total, um universo de trevas, que flagelava a nossa sensibilidade e nos fazia sentir impotentes.
A partir daqueles momentos, o meu posto de trabalho reconduzia-se à enfermaria a prestar cuidados aos feridos internados e os primeiros socorros aos que vinham sucessivamente chegando. Repousava por breves momentos, sentado num caixote, nunca me deitava para descansar ou dormir, mas também não tinha sono. Aparentemente, a enfermaria era a instalação mais segura do aquartelamento, dado que tinha uma cobertura, que se supunha de betão armado. Não sei se era resistente aos bombardeamentos porque, felizmente, nunca foi atingida, o que não deixa de ser curioso mas facilmente se compreende, é que para ali convergiam também os elementos da população feridos ou doentes e, sabe-se lá, muito provavelmente até alguns membros do inimigo.
Todos tínhamos a consciência de que a qualquer momento poderíamos morrer ou ficar feridos. Não havia qualquer abrigo absolutamente seguro. A enfermaria era, de facto, pelo menos na aparência, o reduto mais confiante.
No entanto, assim não o entenderam cinco furriéis do exército, que decidiram construir, para eles, um abrigo subterrâneo, coberto com várias camadas de troncos de árvores e terra. Após a construção, transferiram os seus beliches para lá, com a convicção de que a segurança ali era absoluta, tendo-me dito, com tranquilidade e confiança, na altura: “ “Fuza”, vamos finalmente dormir uma noite tranquila”! Cerca das onze horas da noite, despedem-se de mim, desejando-me felicidades. Passados alguns minutos, surge um ataque intenso e demolidor, cai uma granada de morteiro no abrigo, perfurando a cobertura, e explode no seu interior. Quatro deles tiveram morte imediata e o outro ficou gravemente ferido. Os cadáveres foram retirados dos escombros, por mim e pelo Tenente Pires de Moura. Era a crueldade do destino! … .

DESEMBARQUE: Tens mais algum episódio interessante que nos queiras descrever?

J. P. CANEIRA: Episódios impressionantes ocorriam quase todos os dias, pelo que, no meio de tantos, não é fácil distinguir o grau ou critério de avaliação, mas já que me pedem, vou resumidamente referir alguns:
O Comandante do aquartelamento de Guidaje, Tenente-coronel Correia de Campos, era um homem surpreendente. Creio que todos os militares nutriam grande admiração e respeito por ele. Nunca se abrigava quando surgiam os ataques, permanecendo calmo e sereno no local onde se encontrava. Observei-o várias vezes, de pé na parada, no decorrer de intensos bombardeamentos, segurando o seu “bengalim”, perscrutando o tenebroso cenário ao seu redor.
Em certo momento, o nosso Oficial Imediato, Tenente Pedro Menezes, e eu próprio, fomos chamados por ele, para nos informar que, uma vez que não tínhamos caixões para guardar os cadáveres, tinha decidido improvisar um cemitério, onde iriam ser enterrados os mortos, e que as sepulturas ficariam devidamente identificadas, tendo em vista um futuro resgate dos corpos, o que na verdade veio a acontecer.
Esta reunião teve lugar no seu gabinete, estando ele sentado na secretária e eu e o Ten. Menezes estávamos de pé, em frente dele. Surge, entretanto, um violento ataque, mas o comandante demonstrou ignorá-lo completamente, continuando a conversa connosco, como se nada estivesse a acontecer. Nós, mantivemo-nos firmes no nosso lugar, incapazes de obedecer aos instintos naturais de preservação. Recordo, todavia, que o meu batimento cardíaco era de tal modo intenso que se conseguia ouvir à distância.
A criação do cemitério em Guidaje, seguindo as sugestões por mim formuladas, foi uma solução de recurso racional, tendo em conta que os corpos dos soldados mortos entravam em decomposição em menos de 24 horas.
Tudo fizemos para adiar os enterros, com o propósito de os tornar mais dignos e humanizados, como antes já referi, mas, naquelas circunstâncias, era impossível fazer mais e melhor. Todos os corpos enterrados em Guidaje, foram previamente preparados por mim, entre eles os dos três pára-quedistas que morreram na zona do Cufeu, que recolhi num armazém, onde estiveram cerca de 24 horas.
Uma outra situação interessante, foi a que ocorreu quando, no dia 12 de Maio de 1973, recebemos ordens para enquadrar a coluna militar de reabastecimento, que passaria por locais fatídicos, onde sistematicamente ocorriam mortes e destruições de vária ordem, como na anterior havia acontecido.
Perante este quadro, os Fuzileiros apetrecharam-se com rigor, fazendo parte do armamento a módica quantidade de 18 metralhadoras MG-42. Não se verificou qualquer incidente. Saímos de Binta pelas 09,00 horas da manhã e chegamos a Guidaje por volta das 17,00 horas, perante a estupefacção e admiração dos militares do exército que se encontravam amedrontados no quartel.
A este propósito, o Ten. Coronel Correia de Campos fez o seguinte comentário: “Vocês não foram atacados. Eles são pretos mas não são parvos!”.
Logo após a chegada, não valorizamos tanto como devíamos o facto de o aquartelamento ser constantemente bombardeado e decidimos, antes de mais nada, tomar um reconfortante duche no chuveiro. Eu, como a maioria dos camaradas, dirigimo-nos à zona balneária, que também indiciava os efeitos das morteiradas. Despi-me e ensaboei-me, mas, nesse instante, surge um ataque intensíssimo de morteiros. O pânico foi geral e lançamo-nos em correria, todos nus, desorientados à procura de um abrigo. O problema é que ainda desconhecíamos onde eles se situavam, pelo que o Subten. Pires de Moura, com calma e serenidade, segurando-me por um braço, me disse para não me precipitar, porque não valia a pena correr ao acaso, enfrentando riscos desnecessários. Mantivemo-nos dentro dos balneários até obtermos a informação do melhor local de protecção.
Corremos então para uma vala e deitamo-nos dentro dela, enquanto as granadas de morteiro caiam incessantemente em nosso redor, com explosões ensurdecedoras, que mal deixavam ouvir os gritos desesperados de militares feridos a nosso lado.
Acabado o tiroteio, eu e o Ten. Pires de Moura levantamo-nos ilesos, mais parecendo dois croquetes, em virtude de nos termos atirados ensaboados para o buraco de barro vermelho. Apesar de tudo, tivemos sorte. A que faltou a dois soldados que lá se encontravam deitados, que já dormiam o sono eterno.
Na enfermaria, esperava-me uma imensidão de feridos, clamando desesperadamente por socorro.

DESEMBARQUE: Certamente que, pelo teu extraordinário desempenho, reconhecida competência e eficácia demonstrada, fostes alvo de louvores ou menções elogiosas.
Queres fazer alguma referência sobre este assunto?

J. P. CANEIRA: Sim, na verdade o trabalho que desenvolvi ao serviço dos Fuzileiros, foi objecto de diversas manifestações de reconhecimento. Desde logo, o prémio atribuído por ter sido o melhor classificado no curso de Fuzileiros Especiais. Mas também fui contemplado com algumas menções honrosas, de entre as quais destaco o louvor que me foi concedido, em Setembro de 1973, pelo meu Comandante, Albano Manuel Alves de Jesus, que fundamenta nas qualidades e aptidões demonstradas durante a guerra, dizendo que “o sargento Enfermeiro Caneira sempre se impôs como um excelente profissional, dotado de alto sentido do dever, inexcedível zelo e noção exacta da responsabilidade,” não só na actividade desenvolvida no âmbito do Destacamento mas também na prestação de serviços de saúde, quando da assistência pronta e eficiente aos diversos militares feridos, dos Comandos, Pára-quedistas e do Exército, bem como aos elementos da população. Conclui o louvor referindo que “a acção do Sarg. Caneira, na Guiné, foi excepcional e constituiu motivo de referências elogiosas por parte de superiores de outros ramos das Forças Armadas”.

DESEMBARQUE: Queres deixar mais alguma observação sobre esse período marcante e inesquecível da tua vida, ao serviço dos Fuzileiros?

J. P. CANEIRA: Muito mais teria certamente para dizer, mas já lá vão muitos anos e, como é natural, muitos pormenores, sobretudo no que respeita a datas, não estão muito presentes na minha memória.
Sinto, todavia, um enorme orgulho por pertencer à família dos Fuzos e recordo, com saudade, todos aqueles camaradas que fizeram parte do DFE 4. Foram, e são concerteza, homens extraordinários, corajosos e destemidos. O País tem uma grande dívida de gratidão para com os Fuzileiros.

DESEMBARQUE: A conversa já vai longa, mas, para terminar, o que te oferece dizer, muito resumidamente, da nossa Associação e deste nosso “Desembarque”?

J. P. CANEIRA: Acho que a criação da Associação de Fuzileiros foi uma iniciativa maravilhosa, congregadora de sentimentos e de orgulhos, que consubstanciam uma mística extraordinária, que acalenta, fortalece e rejuvenesce os Fuzos de diferentes gerações, que, com o indestrutível espírito audaz, embarca e se difunde pelo mundo, a bordo deste precioso veículo, que se chama “Desembarque”.
Ilídio Neves/Mário Manso

sábado, 26 de julho de 2008

Com a devida vénia, transcreve-se a entrevista concedida pelo então 1º Gr. 2044/71 José Augusto de Sousa Tavares ao portal jornal da região oeste “Oeste Online”, Edição de 27-04-2008



Trata-se de um relato interessante e ousado que revela a vivência dolorosa de um ex-combatente integrado no DFE 4, ao tempo em comissão de serviço na Guiné.
Algumas imprecisões constantes do texto, nomeadamente de carácter geográfico (já lá vão 4 décadas), não retiram força à narrativa que espelha o ambiente de “stress” e “sufoco” vividos pelos fuzileiros.

Caldas da Rainha
Francisco Gomes // Edição de 27-04-2008
Antigo fuzileiro quer promover encontro com camaradas que estiveram na Guiné
José Augusto Jesus Tavares tem 57 anos e nasceu em Laranjeira, Alvorninha, Caldas da Rainha. Grumete do Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 4 (DFE-4) na Guiné-Bissau, em 1973-1974, pretende contactar com os antigos camaradas para promover um almoço de confraternização.
“Gostava de os encontrar. A maior parte deles não os devo conhecer, porque já foi há muito tempo e alguns já faleceram”, manifesta.
José Tavares após o serviço militar regressou à Marinha Mercante, onde já trabalhava e esteve embarcado durante mais quinze anos, efectuando transportes marítimos para vários pontos do Mundo. Depois estabeleceu-se nas Caldas da Rainha, no ramo do comércio, fundando lojas de pronto-a-vestir e artigos de puericultura. Casado, tem três filhos, todos rapazes, com 30 anos (gémeos) e 23 anos. Tem dois netos, um com 9 anos e outro com 4 meses.

Hoje recorda os tempos de guerra e os sacrifícios que se faziam na altura em nome do patriotismo. Antes de cumprir serviço militar trabalhou três anos na Marinha Mercante. Foi para a Marinha em 1971 e mais tarde entrou como grumete no (DFE-4). “Sabia que a malta especializada, como era o meu caso, ia para o Ultramar. Foi o que aconteceu em 1973, tinha eu 23 anos. Tive a vantagem de já conhecer a Guiné, porque tinha ido lá carregar e descarregar material. Conhecia bem África e o ambiente que ali se vivia. Mas a guerra desenrolava-se no mato, nos portos não havia problemas”, relata.

Em Abril de 1973 foi como fuzileiro especial para a Guiné com a missão de render o DFE-8. “Fomos destacados para Ganturé, no Norte do território. E, mais tarde para o Chugué, no Sul do território. Era um deserto. Fomos nós que construímos o aquartelamento numa das margens do rio Cumbijã. Deram-nos bidões de combustível para cortarmos as tampas e com as chapas montarmos a estrutura lateral do quartel. A parte de cima era com chapa zincada. Fizemos também abrigos e valas para garantir a nossa segurança”, recorda.

“No norte (Ganturé / Bigene) a população local era nossa amiga e gostava de nós. É verdade que havia alguns brancos que exploravam os africanos, mas ajudámo-los em muita coisa. Se nos lavavam roupa nós pagávamos. Muitos viviam à nossa custa”, conta.

José Tavares descreve que “dividimo-nos em quatro secções - Alfa, Bravo, Charlie e Delta. Havia quem tivesse já cumprido mais comissões e era mais graduado. Lembro-me do Joaquim José Simões, de Ferreira do Alentejo, que era a terceira comissão que fazia e era um grande amigo. Às vezes imitava o Spínola, colocando o vidro do relógio num olho. Conhecíamo-nos mais pelos números do que pelos nomes de cada um. Havia o 2042, das Caldas da Rainha, que era o Abílio Pedro, com a alcunha de “Cavalinho”. Eu era o 2044/71”.

“Para tomar banho tínhamos quatro bidões em cima de um tronco de árvore, que eram enchidos com uma mangueira ligada a um motor que ia buscar a água aos poços. Era água fria, mas também com o calor de África não era preciso aquecer. Também não estávamos lá para fazer turismo. Íamos tentar ganhar a guerra e a nossa preocupação era fazer o acompanhamento de oficiais em deslocação à região”, sustenta.

“De quatro em quatro horas éramos atacados”
Um dia, o Comandante do Destacamento, 1º. Ten. Alves de Jesus, deu a informação de que Guidaje estava a ser ocupada pelo PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, que era o inimigo, e tinham de avançar urgentemente para prestar socorro. “Fomos cumprir a ordem e nem tivemos tempo de pensar no perigo que íamos enfrentar”, confessa José Tavares.

“Apesar de ser a minha primeira missão, eu já tinha experiência de armas, porque antes de irmos fizemos muitos exercícios em São Jacinto. A 8 de Maio fomos a caminho de Guidaje e passámos por uma zona onde no dia anterior uma coluna do Exército que ia abastecer o quartel foi alvo de uma emboscada do PAIGC. Só cheirava a carne assada. Faço ideia da malta que lá morreu. Lembro-me de um camarada que estava a socorrer outro e pisou uma mina anti-pessoal que lhe levou uma perna. Para o armamento e munições não serem utilizados pelo inimigo foram enviados os Fiat – aviões da Força Aérea – para bombardear a área e destruir o material de guerra que estava nas viaturas atacadas”, refere.

“Passámos ao lado e seguimos até ao quartel do Exército em Guidaje. Antes de chegarmos vimos dois pretos mortos no chão. Não tinham armas, só as cartucheiras na cintura. Fomos avisados para não mexermos nem sequer nos aproximarmos das pessoas mortas, porque a zona podia estar minada. Os abutres apareciam para comer a carne dos cadáveres. Era um cenário que agoniava”, garante o antigo fuzileiro.

“No quartel, próximo da fronteira com o Senegal, de quatro em quatro horas éramos atacados por mais de 60 morteiros e tínhamos de correr para os abrigos. Nunca vi coisa igual. Passámos dias muito difíceis debaixo de tiro. Morreu muita gente e já não havia condições para lá ficar. A alimentação escasseava porque não havia abastecimento. Um africano ia atravessar a parada do quartel e foi atingido por um morteiro. Os estilhaços entraram-lhe no corpo todo. Não morreu e foi internado na enfermaria. Quando já estava melhor foi para um abrigo subterrâneo, só que o PAIGC atirou uma granada perfurante – que não rebentava logo – e acabou por morrer lá dentro. Quando fomos ver, estava com as pernas em cima da cama e a cintura no chão. Era mais uma baixa de forma inglória”, afirma o caldense.

No dia 13 de Maio, estavam para sair para fazer o reconhecimento do local de onde vinham os ataques e um camarada do DFE 1 foi morto com o estilhaço de uma bomba que rebentou. Para uma partida honrosa para a eternidade exigiram uma urna para transportar o corpo e enviaram um helicóptero levá-la.
“Não morri porque não calhou”

O episódio mais dramático foi dias depois quando tiveram de fazer a rendição e regressar a Ganturé. Havia uma zona de clareira com 300 metros de largura, onde não havia mato, que tinham de atravessar. O PAIGC sabia que naquele dia havia uma coluna que partia de Ganturé e outra de Guidaje e que se cruzariam naquele local, e puseram-se à espera dos portugueses e espalharam minas por todo o lado.

“Os primeiros a chegar fomos nós – carros com passageiros africanos que queriam abandonar Guidaje e ir para sítios mais seguros, e com malta nossa, alguns dos quais feridos. A minha esquadra teve sorte, porque nos conseguimos enfiar no mato, só que ficámos uma hora debaixo de fogo. Eles utilizavam uma arma cuja munição estourava e desfazia-se em estilhaços, o que se tornava perigoso. “Vamos a eles que ainda não é desta que nos vão levar”, gritava, num apelo cheio de heroísmo, um oficial do destacamento, quando foi atingido nas costas”, narra.

“Éramos poucos e o oficial teve de chamar os Fiat para nos socorrerem, porque estávamos sujeitos a morrer ali, já que ficámos encurralados. O chefe da minha esquadra, o marinheiro Moura, mais experiente do que nós, disse-nos: “Oh pupilos, guardem uma munição para cada um, para o caso de não conseguirmos vencer nos matarmos, em vez de nos entregarmos”. Cada G-3 tinha 20 munições e trazíamos sete cartucheiras e um morteiro. Nunca tinha ouvido tal coisa, mas foi uma exclamação normal, porque sabíamos das atrocidades e do sofrimento que poderíamos ser alvo. Não ficámos a pensar, nem reagimos. Acho que se fosse preciso despachávamos todas as munições que tínhamos. Mas felizmente não foi preciso reservar uma para nós. Hoje penso que parecia um filme e não sei se o conseguiríamos fazer se tivéssemos de disparar contra nós próprios”, confidencia o ex-militar.

“Ouvimos as tropas do PAIGC a chamarem-nos “magala” porque pensavam que éramos do Exército. Não víamos o inimigo, mas eles também não nos conseguiam ver. Os tiros eram disparados às cegas e tínhamos de ficar agachados no chão para não sermos atingidos. Ouvíamos as balas a passarem. Até zuniam. Foi a pior altura pela qual passei. O PAIGC estava bem armado e utilizava mísseis para atacar os aviões. Alguns foram atingidos. Ficámos à cabeça do touro e tínhamo-nos de desenrascar e a solução foi recuar para Guidaje, assim como os outros nossos camaradas voltaram para o quartel de Ganturé. Voltámos a ser atacados e não tínhamos comunicações. Em Portugal, a família pensava que tinha morrido, porque se falava que a situação estava má e que tinha piorado. Na verdade, não morri porque não calhou”, manifesta.

“Fomos comendo o que havia – até pernas de rã e carne de crocodilo, e ali ficámos alguns dias até sermos abastecidos. Até penso que foi mentira quando a situação ficou mais sossegada”, desabafa.

Para além desta teve mais duas vezes a morte à frente dos olhos mas por acidente: “Uma vez foi no rio com botes. Levávamos a cartucheira e armas às costas. Eu costumava sempre andar com o motor. Fui pô-lo a trabalhar. Quando comecei a puxar o cordel o motor terá engatado e quando arrancou caí ao rio e por sorte não fui atingido pela hélice, senão retraçava-me todo. O Comandante Alves de Jesus já gritava: “Aquele já foi”. Mas afinal… não fui, não morri. De outra vez íamos do acampamento para o rio e os botes iam em cima de uma camioneta Mercedes. Tinha uma granada na G-3 e meti-a no porta-granadas, só que como não cabia a patilha de segurança, tinha de vir de fora. Eu vinha em cima da camioneta e ouvi dizer que havia uma mina anti-carro. Saltei da Mercedes para vê-la, só que no pulo a patilha da granada agarrou-se numa corda de um bote e partiu-se. Quando vi, pensei que ia morrer, porque era uma questão de segundos para rebentar. Mas não chegou a explodir”.
Francisco Gomes