quinta-feira, 10 de novembro de 2011

UM DIA DE EMOÇÕES...



16 de Março de 1974

“... ouve-se um estampido semelhante ao disparo de uma arma ligeira, seguido de gritos. FP alarmado, aponta para a minha coxa esquerda, onde no camuflado surge uma mancha de sangue.”


Hoje é – espero – o meu último dia, ao fim de um ano, no Chugué, um buraco ignoto na Guiné (Bissau). A montante do rio Cubijã, no limite até onde as lanchas de desembarque podem navegar.


Por ter sido promovido a Capitão-tenente, vou ser rendido.


Dentro de horas entrego o comando do Destacamento de Fuzileiros Especiais ao Oficial Imediato e regresso a Lisboa.
Levanto-me bem disposto. Capricho no barbear, duas passagens, pele “à cú de menino” (como dizia o Pedro Nunes, sargento-enfermeiro da “Sagres”). Visto nas calmas um fato de combate lavado e preparo-me para receber o camarada FP, o oficial nomeado pelo Comando da Defesa Marítima para o representar na cerimónia de “entrega de comando”. Veio de avião de Bissau para Cufar, local a jusante com uma pequena pista de aviação e instalações do Exército e, para o transportar para aqui numa viagem de cerca de quarenta e cinco minutos pelos meandros do rio, destaquei cinco botes de borracha com pessoal e armamento.



FP chega e é recebido cordialmente.
Habituado às comodidades de Bissau, alimentação regular e ar condicionado, longe da presença do inimigo, mostra sinais de intranquilidade e expressa o desejo de que a cerimónia decorra com brevidade, para que possa regressar rapidamente.

Dirigimo-nos para uma “parada” onde em tempos mandei enterrar na vertical um tronco aparado com uma adriça para içar a Bandeira Nacional. Fica situada em frente ao barracão central construído com chapas de zinco. O Destacamento aguarda-nos em formatura. Despeço-me de cada um dos homens com um abraço. Momento bem sentido esse, marcado pelas imagens dos bons e maus momentos vividos em conjunto. Por vezes, lágrimas mal contidas jorram soltas. O isolamento, o perigo, as provações, são a amálgama que robustece o cimento da camaradagem que perdurará para sempre.

Despedida consumada, há que meter os botes na água e rumar quanto antes a Cufar, sabido que é prática corrente o inimigo atacar ao fim da tarde com foguetões de 122 mm. A viagem decorre com apreensão mas sem incidentes. Olhando para a esteira de espuma branca que os botes de borracha provocam no rio, ocorre-me voltar para trás e reunir-me de novo àqueles homens que comigo partilharam as vicissitudes da guerra no último ano. Uma onda de culpa assalta o meu espírito, eles eram a minha família!
Chegados a Cufar, FP já menos tenso e eu, sentados num banco, a aguardar o transporte para Bissau, observamos a curta distância, a actividade de um pelotão de tropa indígena, uns de pé, outros sentados no chão de terra batida, que fazem vistoria ao armamento.

Eis senão quando, troa um estampido semelhante ao disparo de uma arma ligeira, seguido de gritos. FP alarmado, aponta para a minha coxa esquerda, onde no camuflado surge uma mancha de sangue. Baixo de imediato as calças. Com alívio, constato não estar ferido.

Junto ao banco, no chão, jaz um polegar sangrento. Um dos soldados negros contorce-se com dores.

Ele desenroscara o dispositivo central de uma granada defensiva, retirando o detonador e apenas este deflagrara, amputando-lhe um dedo. Tivesse a granada rebentado e decerto o nosso destino seria diferente, bem como o de outros homens ali estacionados.

O avião chega e nós embarcamos. Viajamos calados.

Revejo, como num filme, tudo o que se passou durante o ano que ali estive.

O insólito do acontecido no momento da partida, a iminência de desastre, a coincidência de ter sido eu o atingido por um fragmento humano. Penso no acaso, nos acontecimentos que nos surpreendem sem que deles sejamos cúmplices. No jogo da fortuna e do azar, a única coisa certa é que nenhum de nós pode compreendê-lo ou controlá-lo.

Penso na insustentável leveza do ser.

Alves de Jesus